Cientistas alertam sobre estudos que ligam o álcool a benefícios

Já é senso comum acreditar que o consumo de uma taça de vinho por dia pode ser benéfico para o coração. Essa informação, que une o útil ao agradável, tem como base estudos que apontaram possíveis vantagens da bebida para a saúde cardíaca – e não são raros os trabalhos científicos que tentam avaliar se há algum efeito positivo do álcool para o nosso organismo. Mas será que dá para confiar nessas pesquisas?

Entre especialistas, há consenso de que provar definitivamente efeitos positivos da bebida para o organismo, sobretudo diante dos graves riscos da substância, é algo distante. No início do ano, a Federação Mundial de Cardiologia divulgou documento em que alerta não haver nível seguro de álcool para o coração.
Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o consumo nocivo de álcool é fator causal de mais de 200 doenças e lesões. Além disso, está por trás de mais de 3 milhões de mortes por ano no mundo, além de efeitos sociais e ligados à violência.
Estudos experimentais que destacam possíveis benefícios apontam ação antioxidante, redução da resistência à insulina e diminuição do LDL, o colesterol ruim. Alguns sugerem até algum efeito benéfico contra o surgimento de demências.
Especialistas ouvidos pelo Estadão, porém, fazem ressalvas. “Há outras moléculas antioxidantes; por exemplo. Sabemos que a vitamina C tem esse efeito, mas não dá para dizer que tudo se resolve com acerola”, diz William Peres, professor da área de ciências químicas e farmacêuticas da Universidade Federal de Pelotas.
Parte dos estudos, dizem os cientistas, é preliminar, com poucos participantes ou até mesmo incluíram testes só com animais. Há ainda um problema comum que envolve a metodologia: é possível que outros hábitos do grupo pesquisado, e não o uso de álcool, sejam responsáveis pelo efeito protetivo ou positivo.
“Como cardiologista, nunca posso sugerir beber para ter efeito benéfico”, afirma Fábio Fernandes, da Sociedade Brasileira de Cardiologia e diretor de miocardiopatias do Instituto do Coração (Incor), que destaca ainda o peso da genética. “As pessoas metabolizam o álcool de modos diferentes. Um paciente diabético ou com níveis de triglicérides altos terá alterações metabólicas importantes.”
Uma pesquisa encomendada pelo Instituto Brasileiro do Fígado (Ibrafig) ao Datafolha mostrou que 55% dos brasileiros com mais de 18 anos de idade consomem bebidas alcoólicas, sendo que 32%, ou seja, um em cada três indivíduos, consomem semanalmente. Desses, 44% consomem mais de três doses por dia ou ocasião e nesse grupo 11% consomem acima de dez doses por dia. A dose padrão à qual a pesquisa se refere é a de 14 g de álcool puro, o que corresponde a 45 ml de destilado, ou 150 ml de vinho ou a uma lata de cerveja.
Realizado em setembro de 2021, o levantamento revelou ainda que entre aqueles que afirmam consumir de uma a duas doses de álcool por dia ou ocasião, as mulheres (42%) consomem mais do que homens (32%) e mais do que a média nacional (37%), assim como pessoas acima de 60 anos de idade (52%). Segundo a pesquisa, à medida que aumenta o consumo por dia, diminui a faixa etária, sendo de 10% e 12% entre pessoas de 18 a 59 anos de idade, contra 5% entre os maiores de 60 anos de idade.
Entre os brasileiros que consomem três ou mais doses de bebida por vez, 44% são homens, percentual que sobe para 49% entre os homens nas classes AB. A maioria dos entrevistados acredita que o consumo frequente de álcool lidera o ranking de causa tanto do câncer de fígado quanto da cirrose, mas a maioria (56%) negligencia sua saúde quando afirma nunca ter feito exame para avaliar dano do fígado relacionado ao consumo de álcoo.
De acordo com o presidente do Instituto Brasileiro do Fígado, Paulo Bittencourt, não existe limite de segurança para o consumo, já que a sensibilidade ao álcool é individual. Entretanto, de modo geral, para pessoas sem doença hepática, o consumo moderado, que é de 14 doses para homens por semana, ou sete doses para mulheres por semana, pode ser considerado seguro. Para aqueles que têm algum tipo de doença ou gordura no fígado o indicado é não consumir.
“Mesmo aquelas pessoas que bebem apenas aos finais de semana, conhecidos como bebedores sociais, têm risco duas vezes maior de cirrose, quando seguem o padrão de consumo caracterizado pela OMS [Organização Mundial da Saúde] como bebedor pesado episódico (BPE), isto é, mais de quatro e cinco doses de álcool por ocasião, respectivamente para mulheres e homens”, diz o instituto.
Segundo o instituto, apesar dos riscos, a maioria das pessoas que consome bebidas alcoólicas não desenvolverá cirrose e câncer de fígado, porque para isso, além do uso abusivo do álcool existe susceptibilidade individual, fatores genéticos e ambientais, tais como doença hepática subjacente, obesidade e diabetes que aumentam o risco de dano hepático pelo álcool.
“A recomendação é pelo consumo moderado e consciente, dentro dos padrões considerados como mais seguros, para quem não tem doença hepática. Entretanto, para quem passou ocasionalmente do limite, é importante compensar o uso abusivo com abstinência de álcool nos dias subsequentes, beber bastante líquido e se alimentar de forma adequada. O uso de analgésicos pode potencializar seus efeitos hepatotóxicos associado ao uso de álcool”, explicou o especialista.
Tribuna do Norte