Falsificações de camisas de futebol causam perdas bilionárias e desafiam times

A imagem da transmissão de tevê fecha em um grupo de dez torcedores. O clube pouco importa, menos ainda o estádio onde tal cena foi exibida para milhares de pessoas. A única certeza é que quatro deles não estão com o uniforme oficial da equipe de coração. No Brasil, 37% das camisas de times de futebol comercializadas são falsificadas.

Os números são de um estudo realizado pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) e encomendado pela Ápice (Associação pela Indústria e Comércio Esportivo), entidade formada por grandes empresas do setor de produtos esportivos do mundo, entres elas Nike, adidas e Puma.

No RN, tanto ABC quanto América aderiram à marca própria. A intenção é produzir material que esteja ao alcance de “todos os bolsos”. Ainda assim, ambos sofrem com a pirataria, “A pirataria acaba tirando uma renda significativa do clube, onde antigamente não era possível para o clube suprir em preços, mas hoje um clube como o América já tem linha capaz de atender a todas as classes sociais, além de todos os gostos, com preços variados e com a marca de qualidade de produto oficial, trabalhado por uma indústria renomada. Hoje damos todas as alternativas aos torcedores, porém a pirataria ainda é muito forte”, explica Antônio Neto, gerente de Marketing do América.

No ABC não é diferente. “O projeto de marca própria existe justamente para que o torcedor se conscientize de que a receita é para o clube e não para alguém que comete o crime de de falsificar a marca. Crime esse que, às vezes, o torcedor pode compactuar e infelizmente comprar uma camisa falsificada por alguém que vai ter 100% da receita e o clube nada. Hoje o ABC tem produtos a partir de R$ 99,00. Claro que a camisa oficial, que é a peça mais desejada vai em torno de R$ 179,00 a R$ 200,00 e o sócio tem 10% de desconto em toda a linha”, comenta Alan Oliveira, diretor de Marketing do ABC.
Em 2021, foram vendidos 60 milhões de camisas de times de futebol no Brasil, sendo 22 milhões falsificados. A perda foi proporcional ao lucro. A Ápice informou que o faturamento das empresas com o comércio de produtos esportivos, incluindo nesse montante outros itens, como agasalhos e tênis, foi de R$ 9,12 bilhões no ano passado. O prejuízo chegou à mesma cifra: R$ 9 bilhões. Foram comercializados mais de 150 milhões de peças falsificadas. Só com artigos de futebol o prejuízo foi de R$ 2 bilhões em 2020, segundo levantamento do Fórum Nacional contra a Pirataria e Ilegalidade (FNCP).
O maior inimigo não é aquele vendedor ambulante que trabalha nos arredores dos estádios em dia de jogos. Eles ainda estão presentes com o varal improvisado oferecendo camisas e, claro, conseguem seduzir alguns torcedores, mas têm um alcance pequeno perto do comércio online. A oferta de produtos esportivos falsificados é monitorada pela Ápice quase que em tempo real, em parceria com uma empresa especializada em comércio digital.
Empresa que é líder de compras online em diversos países asiáticos, como Cingapura e Malásia, e que opera no País desde 2019, a Shopee Brasil está no centro do alvo. São mais de 17 mil vendedores que comercializam produtos esportivos falsificados localizados no Brasil e no exterior, com mais de 100 mil links e seis milhões de peças em estoque.
“Se você pesquisar por ‘camisa da seleção’ vai ver até vídeos de fábricas no exterior falsificando essas camisas para colocar na mão do consumidor brasileiro por um preço muito baixo”, afirma Renato Jardim, diretor executivo da Ápice.
A camisa da seleção brasileira que vai vestir Neymar e companhia na Copa do Mundo no Catar é vendida pela Nike em duas versões. A de maior preço, definida como modelo torcedor, custa R$ 349,99. A Supporter, R$ 249,99. A pirata (descrita como de alta qualidade no Shopee) pode ser adquirida por R$ 96,99.
“Como isso, (a camisa) entra no Brasil e chega na mão do consumidor sem pagar nenhum imposto? A plataforma não poderia deixar ser tomada por pessoas que estão praticando um ato ilícito. Não existe um esforço para identificação e suspensão das ofertas e vendedores como acontece com outras plataformas”, comenta Renato Jardim, citando o Mercado Livre como exemplo de combate ao comércio de falsificados. “Os sites precisam ser proativos, ativos e reativos para coibir esse comércio.”
SOLUÇÕES
Para Antônio Neto, do América, o poder público deveria fiscalizar. “Acho que o poder público tem que dar sua parcela de contribuição. Se ele combatesse o clube poderia estar ajudando ainda mais. No entanto, hoje parece ser uma via onde só o clube se preocupa e a gente acaba sem ter o resultado ideal nesse combate”, aponta.
Na opinião de Alan Oliveira, do ABC, precisam existir leis que protejam os clubes. “Algo que possa punir e acabar de vez com esse mercado informal. Quem sabe dar o poder de polícia que o clube não tem para garantir a preservação da marca através de um trabalho mais agressivo, afinal o mercado informal está ali praticamente na calçada do clube, em frente à bilheteria. Já o próprio ABC tem que conscientizar seu torcedor para não comprar o pirata uma vez que o clube tem todo um mix de produto para a torcida”, finaliza.
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Alan Oliveira, do ABC acredita que leis precisam ser criadas

Alan Oliveira, do ABC acredita que leis precisam ser criadas

Para Renato Jardim, “não existe uma bala de prata que possa resolver ou mudar drasticamente o cenário da falsificação de artigos esportivos”, mas ele entende que “medidas conjuntas podem ajudar” no combate ao comércio de camisas piratas.
A política tributária é uma delas. “A diferença de preço entre o produto original e o pirata é um dos elementos que gera essa comercialização em grande escala. A parte relevante do preço do original está na tributação. Você precisa ter uma política tributária adequada justamente por saber que esse produto é alvo de pirataria. Quem tem um poder aquisitivo menor também quer ter acesso ao produto”, entende Renato Jardim.
Atualmente, sobre a produção das camisas incide ICMS e IPI na saída do estabelecimento que fabricou. Sobre a receita de venda, o fabricante recolhe IRPJ, CSLL, PIS e Cofins. Tudo isso encarece o preço final do artigo esportivo, que é repassado ao consumidor. Já quem produz o artigo pirata não paga imposto, muito menos investe em tecnologia e marketing.
“É um desafio muito grande para os clubes baratearem e tornarem acessíveis seus produtos, já que várias medidas dependem do poder público, como, por exemplo, uma concessão de benefícios fiscais, uma diminuição da tributação”, afirmou Rafael Marin, advogado tributarista e professor de graduação e pós-graduação em direito tributário. A diminuição da tributação, acrescentou Rafael Marin, depende de articulação com Estados e União e ainda da aprovação nas respectivas casas legislativas.
Outra questão em que Renato Jardim lança luz diz respeito às leis para aqueles que cometem o crime de pirataria contra marcas esportivas. Segundo ele, é necessária uma atualização da tipificação. “E não estamos falando da tipificação contra o ambulante, o camelô, que ganha uma diária para vender no dia do jogo, nos arredores do estádio”, comentou. “São os responsáveis pela atividade. Aqueles que estão por trás do ilícito, algo que está muito bem organizado, produção, distribuição, contrabando quando o produto vem de fora. Precisamos de uma tipificação mais correta, com resultados e consequências reais, que façam essa atividade não valer ser cometida.”
PROTEÇÃO
Em 2014, ano da Copa do Mundo do Brasil, a empresa ADIDAS contratou, em Natal, o advogado Airton Romero Ferraz para defender seus interesses. Ele revela que, na época, a empresa catalogou locais onde seus produtos eram comercializados de forma irregular e que encontrou inclusive uma indústria, no interior do Estado, produzindo materiais com sua marca.
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Advogado Ayrton Romero Ferraz já combateu pirataria

Advogado Ayrton Romero Ferraz já combateu pirataria

O advogado “costurou” uma parceria entre a justiça e a Polícia para atuar naquele período. “Existe um entendimento de que nesses crimes deveria haver uma representação por parte de quem está sofrendo, ou seja, da marca. A marca teria que fazer essa representação. Mas, entendam que a questão da pirataria vai muito além de uma questão particular da empresa. Mais de dois milhões de empregos são retirados do mercado em virtude da pirataria. Ou seja, é um problema, no Brasil e no mundo, muito grande. Hoje se tem a ideia de que o próprio crime organizado lucra muito com a questão da pirataria”, explica.
Neste aspecto, alguns clubes, como o Palmeiras, tem um escritório de combate à pirataria que trabalha diretamente com os órgãos públicos para minimizar tal prática. O departamento jurídico do São Paulo também está sempre atento aos casos envolvendo produtos relacionados ao clube. Segundo Felipe Dallegrave, diretor executivo jurídico do Internacional, o time de Porto Alegre “busca rastrear a origem desses produtos e identificar os caminhos até chegarem ao consumidor e, posteriormente, realizamos uma denúncia para as autoridades.”
O Palmeiras trabalha em conjunto com a Puma, sua fornecedora, para oferecer “produtos de qualidade em diferentes faixas de preço”, segundo nota enviada ao Estadão. “Em nosso último lançamento, já experimentamos trazer novas opções e continuamos trabalhando com o objetivo de aperfeiçoá-las”, acrescentou, citando o novo terceiro uniforme.
Números
37% das camisas de times de futebol vendidas no Brasil são falsificadas;
22 milhões de camisas de clubes falsas foram comercializadas em 2021;
2 bilhões de reais foi o prejuízo com pirataria em 2020 com produtos.