Prisões por dívida com pensão alimentícia crescem 24,6% no RN

As prisões por não pagamento de pensão alimentícia subiram 24,6% em 2022 no Rio Grande do Norte, segundo mostram dados do Tribunal de Justiça (TJRN). Neste ano, de janeiro até 10 de agosto, foram decretadas 476 prisões, enquanto que no mesmo período do ano passado a Justiça concedeu 382 pedidos de prisões civis em todo o Estado. De acordo com especialistas ouvidos pela TRIBUNA DO NORTE, o aumento dos dados pode ser explicado por um “represamento” dos processos durante o período mais crítico da pandemia e pelo cenário econômico de desemprego e alta inflacionária.

As estatísticas dos sistemas processuais do TJRN apontam que o Estado apresentava ritmo de queda desde 2018, quando 730 pessoas foram presas por não pagar pensão de alimentos. Em 2019 o índice baixou para 671, depois 494 em 2020 e 382 no ano passado, sempre no período analisado de 1º de janeiro até 10 de agosto. As chamadas prisões civis podem durar até 90 dias e hoje há cinco pessoas custodiadas por esse motivo no sistema penitenciário potiguar, segundo a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap).

O vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (Ibdfam/RN), André Franco, diz que as prisões são efetivas para o cumprimento das dívidas. “Não deveria ser [efetiva], mas infelizmente é. Não deveria chegar a esse ponto extremo. Essa coerção, que é uma atitude extrema, mobiliza o devedor e todo seu grupo familiar. As pessoas fazem um esforço concentrado para pagar aquele montante, que às vezes é alto em relação à pensão mensal. Por que não fazer esse esforço mensalmente? Normalmente as pessoas confiam que não serão presas por causa da morosidade natural do Judiciário, mas as Varas de Família de Natal são bem céleres nesse ponto”, comenta.
Franco diz ainda que a simples abertura do processo, sem o cumprimento da prisão, já é um motivo para o pagamento das dívidas. “Das 476 prisões que tivemos, outras não precisaram ser feitas porque a pessoa pagou antes. Então essa é uma medida eficaz, muito embora não seja a melhor alternativa, na minha avaliação e de vários professores da área, mas é o que nós temos hoje”, acrescenta o advogado especialista em direito da família e sucessões.
Após a prisão, o devedor pode ser solto depois que quitar a pendência. Caso a prisão ultrapasse o prazo máximo de 90 dias e a dívida não tenha sido paga, o devedor será solto e não poderá ser preso novamente no mesmo processo. Ele só poderá voltar a ser preso caso uma nova ação seja movida. “O fato dele ter sido preso não evita que vá preso de novo, desde que essa nova dívida seja relativa a um novo período, que não integrou o motivo daquela primeira prisão”, diz o presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Norte (OAB-RN), Daniel Lacerda.
Há ainda quem está tentando reaver o pagamento de dívidas de pensão alimentícia mediante a prisão do devedor. É o caso da empregada doméstica Gilvaneide da Silva, 46, que há três anos enfrenta problemas com o ex-companheiro para conseguir os vencimentos para sustentar a filha de 10 anos. No início de 2019, ela abriu um processo para que o pai da criança fizesse o pagamento regular. “Eu botei na Justiça e ele começou a pagar, só que um tempo depois, em maio, ele parou de dar. Entrei novamente na Justiça”, diz Neide, como é mais conhecida.
À época, a dívida, que hoje é de R$ 7.250, era de cerca de R$ 2.500, conta Neide. Na segunda tentativa da doméstica resolver a situação na Justiça, foi feito um acordo com o devedor para conciliar o pagamento regular da pensão com a dívida em uma espécie de parcelamento, mas que não foi cumprido. “Ele só pagou uma parcela de R$ 512 e uma pensão de R$ 160, aí parou de dar de novo”, conta.
Depois dos novos atrasos, Neide decidiu pedir a prisão por não pagamento do compromisso. Segundo ela, o devedor não foi preso devido a um erro documental no processo, mas há a possibilidade da prisão ser decretada ainda neste mês. “No dia 27 agora vamos ter uma resposta em relação a isso. Eu descobri o local onde ele trabalha porque ele me mandou uma mensagem, dizendo que tinha perdido o trabalho, mas ele não perdeu o emprego, continua lá ainda”, afirma.
Perda de renda não é motivo para não pagar 
O presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB-RN, Daniel Lacerda, explica que a mera perda de renda do devedor não pode ser motivo para não fazer os depósitos. “Se você não tem mais condições de pagar aquele patamar que foi fixado anteriormente, por acordo ou decisão judicial, é dever de quem deve pagar fazer uma revisão porque o assunto sempre pode ser revisto pela Justiça quando há alteração das condições”, afirma.
“O que não pode é não ter mais a condição e não revisar, só quer tentar resolver isso na execução, aí não tem como. A execução é para o período que ele devia, se não revisou, a Justiça fatalmente vai decretar a prisão civil da pessoa. O campo para se discutir a impossibilidade de não pagar não é a execução, a pensão é que tem que ser revisada”, diz o advogado.
A partir do atraso da primeira parcela, a pessoa que se sentir lesada já pode ingressar com um processo na Justiça, orienta a OAB-RN. De acordo com o presidente da Comissão de Direito de Família e Sucessões, Daniel Lacerda, não há necessidade de esperar três meses ou mais para provocar a Justiça. Lacerda detalha que existem duas formas de se cobrar o pagamento da pensão alimentícia na Justiça: pelo rito que pode levar o devedor à prisão ou como se fosse uma dívida comum, que pode ser quitada com expropriação de bens.
“A primeira é a forma mais gravosa, onde muitas vezes, devido às justificativas, o devedor vai preso por até 90 dias. Outra forma é pelo rito comum, como se fosse uma dívida qualquer, que não vai buscar a prisão civil. Nesse caso, a parte vai buscar a expropriação de bens, bloqueio de carros, imóveis, penhora em conta bancária, desconto de percentual diretamente na folha de pagamento do empregador ou de órgão público ao qual ele está vinculado. Existem essas duas formas, vai caber ao credor a escolha por uma delas”, explica Daniel Lacerda.
Aumento é causado por crise e pandemia
Desde março de 2020, com a chegada do vírus da covid-19, o Judiciário do País passou a lidar com questões inéditas, o que afetou andamento de processos e a situação dos próprios estabelecimentos prisionais. O advogado Daniel Lacerda diz que várias decisões judiciais não levaram às prisões por causa do cenário da crise sanitária, o que causou um represamento. “Diversos processos não evoluíram para o que diz a Lei, que é a prisão da pessoa que deve, então agora, passada a restrição que houve, os processos retornaram aos seus cursos comuns”, afirma.
A prisão em si também foi alterada no período, diante de um entendimento da Justiça que permitiu o cumprimento da pena civil do devedor de alimentos em regime domiciliar. A decisão foi uma tentativa de conter o avanço da doença no Brasil. Em março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Recomendação 62/2020, orientou os magistrados do país, em razão da pandemia, a avaliarem a possibilidade de cumprimento das prisões por não pagamento de pensão em regime domiciliar. Em novembro de 2021, a recomendação foi revista pelo CNJ em virtude do arrefecimento da pandemia e as prisões em regime fechado voltaram a ocorrer.
O impacto econômico que a pandemia causou na população também ajuda a entender o quadro de aumento de prisões, analisa o advogado especializado André Franco. “Era um cenário esperado no pós-pandemia, embora ainda estejamos oficialmente na pandemia. O aumento decorre da dificuldade que as pessoas estão encontrando para assumir o compromisso judicialmente estabelecido porque a prisão só ocorre quando há uma fixação judicial que não é cumprida”, declara.
No entanto, Franco afirma que o argumento não pode ser usado de forma genérica e que o Judiciário não acata este tipo de justificativa. O especialista acrescenta que a crise criou uma maior necessidade das pessoas buscarem seus direitos. “Se a gente analisar pelo lado de quem gerencia esses alimentos, geralmente essa pessoa tinha uma fonte de renda e quando o outro faltava, ela não buscava essa medida [da prisão], fazia uma cobrança, ia atrás. Muitas vezes, as pessoas ligavam e diziam ‘Dr., eu quero cobrar, mas não quero prender’ e hoje em dia não mais. As pessoas dizem que não têm como cobrir”, pontua André Franco.
Prisões por falta de pagamento de pensão (dados relativos ao período de janeiro a 10 de agosto):
2022 – 476
2021 – 382
2020 – 494
2019 – 671
2018 – 730
Fonte: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte (TJRN) e Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap)