Burocracia e altos custos: retificação de nome para pessoas trans é desafio no RN

Um direito básico para qualquer pessoa que é uma das maiores dificuldades para outras. Ser reconhecido pelo nome, pela forma como quer ser tratado, é um dos maiores empecilhos da população transexuais e travesti em todo o mundo. A situação diminuiu com a chegada do RG Social, documento que adota os nomes e gêneros desejados, porém, não substitui o documento original. Neste sentido, são muitos os casos de pessoas trans que buscam a retificação, isto é, a alteração oficial do nome e do gênero. No Rio Grande do Norte, por sua vez, a população trans esbarra em empecilhos cartoriais, comprovações e altos custos, que chegam a quase R$ 340, valores que para uma população que não tem acesso ao mercado de trabalho e está em ocupações informais é considerado elevado. Afinal, quem não quer ser tratado pelo nome e gênero pelo qual se identifica?

O debate foi reacendido nas últimas semanas com um caso de transfobia no maior reality show do País, o Big Brother Brasil, quando a participante trans, a cantora Linn da Quebrada, foi tratada com o pronome masculino e ouviu a expressão “traveco” durante um diálogo.
No Estado, o procedimento para a retificação do nome e gênero para pessoas trans foi autorizado no dia 28 de maio de 2018, por meio do Provimento 175/2018, do Tribunal de Justiça do RN, que autorizou aos transexuais a alterarem o nome e gênero diretamente no registro civil, independente de processo judicial. Antes, era necessário entrar na Justiça, além da exigência de laudos psicossociais e exames clínicos.
Apesar disso, trans e travestis potiguares têm encontrado dificuldades para acessar os cartórios no Estado, uma vez que a retirada da documentação (2ª via da Certidão de Nascimento, Certidão Negativa de Protesto e a Averbação), são serviços pagos junto aos cartórios. Juntos, em alguns casos, podem chegar a R$ 340. Há a possibilidade da gratuidade, mas só em casos de comprovação de hipossuficiência.
“A hipossuficiência pode ser autodeclarada, a pessoa mesmo declarar quando vai ao cartório. Pode ser via parecer da equipe socioassistencial. Pode ser pela folha resumo do CadÚnico ou pela Defensoria, que é o que os cartórios exigem. Se a Defensoria comprova, os cartórios concedem a gratuidade. Esse caminho é o que a gente tem hoje, porque as pessoas e o Centro em articulação com os cartórios não conseguem a gratuidade”, explica Luana Soares, assistente social e coordenadora do Centro de Cidadania LGBT+ de Natal.
Alex Régis
Dália Pietra procurou a Defensoria Pública para conseguir a mudança. “Quem não quer ser chamada pelo nome?”, questiona

Dália Pietra procurou a Defensoria Pública para conseguir a mudança. “Quem não quer ser chamada pelo nome?”, questiona

Ainda segundo Luana Soares, a retificação do nome e o acesso a direitos básicos são as principais demandas do espaço, que atualmente atende cerca de 60 pessoas a população LGBT de Natal por mês. “É um direito elementar. Abre portas aí pra todos os outros. E pra acessar qualquer política pública, é preciso apresentar o seu nome. A população trans, em sua maioria, é uma população pobre: ou não trabalham ou estão em subtrabalhos”, diz Soares.
Em Natal, o Instituto Técnico Científico de Perícia do RN (Itep-RN) emite o RG Social para pessoas trans e travestis. Em 2021, foram 134 emissões, maior número desde 2018, ano do início do serviço. Nesta segunda-feira (31), em alusão ao Dia da Visibilidade Trans, haverá uma ação alusiva à data, comemorada no dia 29, com emissões do RG Biométrico na Central do Cidadão do Alecrim. Serão 60 fichas ao todo.
Acesso a retificação evita constrangimentos
O acesso a retificação do nome e gênero para pessoas trans e travestis evita uma série de constrangimentos e garante a dignidade e acesso a direitos básicos. Além disso, o RG Social não substitui o RG original, o que ainda causa constrangimentos. A medida, que é nova no RN, faz com que alguns potiguares encontrem dificuldades em virtude da demora judicial  e dos altos custos.  Quem não quer ser chamada pelo nome?
A potiguar Dália Pietra Teixeira da Silva, 20 anos, tem esbarrado nessas questões. Ela estuda Ciências Sociais na UFRN, mas está sem emprego e renda, no momento, e precisou recorrer à Defensoria Pública para obter a mudança. O processo corre desde abril de 2021, mas ainda não avançou, segundo ela, que reclama da demora no processo.
“O nome social ainda é pouco. E a retificação é um processo cansativo porque é burocrático e por questões financeiras. É uma questão de direito nosso”, disse, citando ainda as dificuldades de deslocamento para os cartórios, uma vez que mora na zona Norte de Natal. A escolha pelo nome foi em homenagem a sua avó, que tinha nome semelhante.
Esse também foi o problema encontrado pelo natalense Ícaro Raí Soares de Moura, 29 anos. Ele já se reconhece como homem trans há dez anos e resolveu mudar sua documentação por completo para evitar constrangimentos em locais públicos. Esse, inclusive, é um dos principais motivos que pessoas trans buscam a retificação.
Magnus Nascimento
Ícaro é um dos potiguares que desistiu de esperar e pagou por conta própria a retificação

Ícaro é um dos potiguares que desistiu de esperar e pagou por conta própria a retificação

“Meu nome no trabalho ainda está como antigo, porque ainda estou identificando alguns documentos. É muito importante pra mim, eu já era tratado como Ícaro no trabalho, mas a questão burocrática também é muito importante. Sempre apresentava os dois RGs: o civil e o social e tinha que estar tem que estar explicando. Retificando o nome já não existe mais esse constrangimento”, explica.
O potiguar chegou a ser encaminhado pelo Centro Municipal LGBT+ de Natal para emitir a sua documentação junto aos cartórios de Natal de forma gratuita. Sem recursos disponíveis à época, tentou a gratuidade por meios extrajudiciais, com o apoio da Defensoria Pública do RN, o que não foi possível. Cansado de esperar, resolveu pagar por conta própria.
“Foi cansativo, não tive retorno. Então eu decidi que ia pagar porque pagando tudo anda mais rápido. Então foi uma decisão minha pagar porque não tinha mais condições de esperar. Porque eu fiquei pensando, esperar até quando? Porque o que a gente percebe é que nós somos de fato negligenciados”, lamenta o potiguar, que trabalha numa rede de cinemas de Natal.
O natalense Breno Oliveira Brito, 33 que fez a retificação do nome nos últimos meses por conta própria,  também defende a gratuidade do serviço para pessoas trans. “Me reconheci como pessoa trans ano passado. Em duas semanas saiu minha certidão. Quando recebi foi uma felicidade imensa”, disse.
“Essa questão do nome é extremamente importante. Sempre acontecia, com meu plano de saúde, que ainda não atualizei meu nome. Então tenho que andar com a carteira, o RG Social, que não é válido como documento oficial. Pra mim é um constrangimento quando preciso ir numa urgência, o pessoal me chamando pelo nome antigo. Eu passando mal, tendo que explicar isso. É toda uma burocracia. Então é por isso que as pessoas buscam essa retificação do nome e dos documentos”, disse.
Cartórios voltaram a cobrar por mudança
O procedimento de retificação do nome no Rio Grande do Norte chegou a ser gratuito por dois anos. Entre maio de 2018, data do provimento do TJRN, e junho de 2020, a emissão da Certidão Negativa de Protesto e a Averbação não precisavam ser pagas por pessoas trans em situação de vulnerabilidade econômica. O entendimento, no entanto, mudou.
Após uma consulta pública feita por um cartório de Santo Antônio à Corregedoria do Tribunal de Justiça do RN, os dois serviços passaram a ser cobrados pelos cartórios. A consulta levantou a possibilidade dos atos gratuitos serem ressarcidos pelo Fundo de Compensação dos  Registradores Civis de Pessoas Naturais.
“Relevante perceber que as situações de isenções acima elencadas não englobam qualquer ato praticado do registro civil de pessoas naturais, mas apenas aos atos de registro de nascimento, óbito e casamento. Porém, o ato em debate (averbação de mudança de nome e de sexo) não possui idêntica natureza desses casos”, diz a decisão do juiz corregedor auxiliar Diego de Almeida Cabral.
O magistrado cita ainda que a Lei Estadual n. 9.278/2009 (Lei de Custas e Emolumentos do Rio Grande do Norte), não cita norma específica estipule gratuidade para a averbação. Em nota enviada à TN, o TJRN disse que não houve alteração quanto ao entendimento “é preciso que o caso se encaixe em situação na qual a pessoa trans seja hipossuficiente, ou seja, não possua renda ou esteja vinculada a um programa social (como o bolsa-família, por exemplo) ou algo neste sentido”.
“Se a pessoa pediu na justiça a gratuidade e a justiça ampliou para algum cartório extrajudicial a gratuidade, só fazemos cumprir. Não se discute. Teria que remeter uma lei estadual sobre isso. Não foi proposto nem pelo TJ nem algum projeto neste sentido. Então esse procedimento aqui no RN ainda é cobrado. Há uma averbação da retificação. Não fazemos nada fora da lei”, explica o vice-presidente da Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Norte (Anoreg/RN), Airene Paiva.
A defensora pública Cláudia Queiroz, coordenadora do Núcleo de Minorias da DPE/RN, explica que o órgão vai buscar a regulamentação dessa gratuidade junto ao TJRN. Entre 2021 e 2022, 41 pessoas procuraram a DPE para acessar o direito.
“Estamos tendo que ingressar com ação judicial realmente pra consolidar o direito a retificação do nome. Só que a ação judicial tem a problemática de que demora mais, porque são muitos processos e o juiz não está julgando só aquelas situações, tem uma série de outros processos. Estamos avaliando junto ao defensor geral pra fazer essa solicitação à presidência do TJRN”, completou.
Como acessar o serviço?
Como faz?
Reunir documentos
Ir ao cartório de registro civil e fazer requerimento de alteração do nome e gênero
Quais documentos?
RG, CPF, Registro de Nascimento, Título de Eleitor, Comprovante de residência;
Emissão via internet:
Certidões criminais e civis da justiça Federal e Estadual;
ncertidão da Justiça Eleitoral; certidão da Justiça do Trabalho e Justiça Militar (se for o caso).
Emissão nos cartórios:
Certidão Negativa de Protesto (emissão no local de residência).
Quanto custa?
Certidão Negativa de Protesto*: R$ 86,26
Averbação: R$ 166,63
*Em Natal, são necessárias duas certidões de protesto, totalizando R$ 172,52. Com a averbação, o total fica R$ 340. Em alguns municípios, é necessário apenas uma certidão negativa de protesto.